Projeto já se arrasta há cinco anos e deveria levar água para a região que enfrenta a pior seca dos últimos 40 anos.
![]() |
Irregularidades na obra do Rio São Francisco Foto: Reprodução |
O Fantástico mostra uma investigação especial sobre a maior
obra de infraestrutura do Brasil: a Transposição do Rio São Francisco. O
projeto já se arrasta há cinco anos e deveria levar água para a região que
enfrenta a pior seca dos últimos 40 anos.
A repórter Sônia Bridi e o cinegrafista Paulo Zero
percorreram mais de mil quilômetros pelo sertão do Nordeste. É mais uma
reportagem da série Brasil: Quem Paga é Você.
Já são dois anos, a estação das chuvas chega, as nuvens se
formam, mas não deixam cair uma gota de água. Estamos em Cabrobó, Pernambuco. A
apenas 20 quilômetros das margens do Rio São Francisco, a seca espalha suas
vítimas na beira da estrada. O gado morto se incorporou à paisagem, num tempo
em que só os urubus conhecem fartura.
Na fazenda, o homem de 90 anos está sozinho. Chama o filho,
que saiu para cuidar do gado. Ele chega, rasgado, desgrenhado, e revoltado. “Eu
não tenho tempo de sair daqui para pedir socorro ao povo. Três vacas caídas
ontem só por que eu saí”, conta Seu Avenor.
Dono de 270 hectares de caatinga, Seu Avenor é considerado
rico demais para ter aposentadoria rural. Durante meses comprou comida para o
gado, mas o dinheiro acabou.
“Se a senhora quiser ver como é que dá um jeito,
caminha atrás d’eu que a senhora vê o que eu estava fazendo, nos chama o
homem”, diz ele.
Ele prepara o único alimento que resiste a vinte meses de
seca: o xique-xique. Os galhos vão para o fogo, tempo suficiente para queimar
os espinhos, mas não demais, para não consumir a água que o cactus armazena. Os
bichos famintos disputam os galhos ainda quentes.
Quanto vale hoje uma cabeça de gado dessa, qualquer uma?
“Ah, isso aí não tem preço, não, porque diz logo: ‘Não, está
magra. Vai levar para lá e não tem o que comer para dar. Aí querem dar o quê?
Cem contos, cento e cinqüenta”, diz Seu Avenor.
E um gado gordo, o senhor vende por quanto?
“Uma rês grande dessa aí gorda é mil e tantos contos”, diz
Seu Avenor.
Um terço do rebanho morreu. A água acabou e o caminhão-pipa
custa R$ 150. A apenas dois quilômetros dali, um canal seco é a lembrança da
obra que deveria estar ajudando a enfrentar a seca que castiga o sertão. A
transposição do Rio São Francisco - o Velho Chico, que corta o sertão de Minas
a Alagoas. Dois canais, com mais de 500 quilômetros, para levar a água para
cinco estados, passando pelas regiões mais secas do Brasil.
A transposição do São Francisco sempre foi polêmica. Os
grupos que se organizaram contra argumentam que ela põe em perigo o Rio São
Francisco, não resolve o problema da seca e só está sendo feita para irrigar as
terras dos ricos. Com a obra pronta, saberemos quem tem razão. Só que ela
deveria ter sido concluída no final de 2012. E ainda há trechos em que as obras
estão abandonadas.
O sertanejo ainda vai ter que esperar três anos para ver a
água correndo por esses canais. Além disso, nesse período o custo disparou.
Começou em R$ 4,7 bilhões e já chega a R$ 8,2 bilhões. Um aumento de 80%.
Durante cinco dias, percorremos 1,2 mil quilômetros ao longo
do eixo norte, passando por três estados.
“Eu não posso dizer que não vai chegar. Agora, no momento,
eu olho e não vejo como é que essa água, como vem uma perna d’água para aqui”,
lamenta Seu Avenor.
Em Cabrobó, o canal chega pertinho do rio, mas não está ligado a ele. A obra para permitir a captação da água ainda nem começou. Ao lado, o início das obras de uma estação elevatória é só uma amostra da colcha de retalhos que é a obra da transposição. Quarenta e três por cento estão prontos, mas em pedaços que não se conectam, nem uma gota d’água passa pelos canais.
O canteiro de obras mais ativo fica em Salgueiro,
Pernambuco. No local está sendo construído um grande reservatório de onde a
água vai ser bombeada para o ponto mais alto da transposição. Em cima, a água
vai passar 180 metros acima do leito do São Francisco. Dali em diante, só com a
força da gravidade vai percorrer mais de 100 quilômetros.
Foi este o cenário que o ministro da Integração Nacional,
Fernando Bezerra, escolheu para dar entrevista.
Por que essa obra ficou tão mais cara, quase dobrou de
preço, e atrasou tanto?
Ministro: “O projeto básico foi concluído em 2001. Esse
projeto básico serviu de base para licitações. E os projetos executivos foram
desenvolvidos ao longo da obra. Ocorreu uma grande discrepância entre o projeto
básico e o projeto executivo da realidade encontrada em campo”.
O projeto básico foi feito ainda no governo Fernando
Henrique Cardoso. Quando as obras começaram, em 2007, o projeto não foi
revisado ou atualizado. Projeto mal feito é a causa mais frequente de atrasos
de obras públicas no Brasil. A empreiteira ganha a licitação e, ao começar as
obras, descobre que tem mais trabalho, e com custo diferente do que o previsto.
Fantástico: Mas o projeto básico não deveria ser mais
detalhado do que é?
Ministro: “A legislação não define regras muito claras para
esse projeto básico, se cumpriu toda a legislação. Só que é preciso lembrar que
essa é uma obra de engenharia muito complexa”.
“A Lei de Licitações e Contrato é muito clara. E nela se
você verificar lá no artigo sexto, que ela tem vários incisos detalhando o
projeto básico. Que é exatamente para ele ser um projeto detalhado. Então,
quando você começa um projeto, bota uma licitação na rua com um projeto básico
mal feito, deficiente e sem planejamento, o resultado é a obra paralisada. São
obras mal feitas, com má qualidade e sem o resultado esperado pela população”,
esclarece o Ministro do TCU, Raimundo Carreiro.
Um exemplo de prejuízo provocado pela falta de um bom
projeto executivo é quando é preciso fazer o deslocamento de imensa quantidades
de terra. No local, os lotes foram licitados sem que ficasse especificado
quanto seria de terra macia e quanto de pedreira, por exemplo, que precisa ser
explodida, o que custa muito mais caro. Além disso, sem um levantamento
geológico, sem saber exatamente com que tipo de terreno se está lidando, o
projetista pode escolher passar por uma pedreira, tendo opção de terra macia
bem ao lado. Ou cavar um túnel em terreno que se esfarela, sem a técnica
adequada. Um túnel desabou quando 120 metros já haviam sido escavados.
Era um domingo em abril de 2011, o sistema de monitoramento
dentro do túnel indicou uma movimentação de terra. Todos os equipamentos foram
retirados e duas horas depois tudo veio a baixo.
Ninguém saiu ferido. Mas foi um ano e meio parado, para
finalmente fazer um projeto detalhado, e recomeçar tudo, bem ao lado.
O novo túnel segue as técnicas para a contenção das paredes frágeis, mas só avançou 20 metros. Do outro lado da montanha, a frente de trabalho que vem na direção oposta deu a sorte de cavar rocha firme já perfurou quatro quilômetros e meio.
Agora, quando se bota as máquinas em campo, ministro, sem
saber exatamente que tipo de solo vai encontrar que tipo de projeto vai ser
executado, como vai ser detalhadamente essa obra, não é botar o carro na frente
do boi?
Ministro: “Não. Diversos projetos de engenharia são tocados
com os projetos executivos sendo feitos ao tempo em que a obra vai avançando”.
Antes e depois do túnel, dois trechos completamente parados.
De lá, a água viria reforçar o açude Boqueirão, já na Paraíba, que está só com
17% da capacidade. O nível da água baixou tanto que expôs as ruínas da antiga
cidade de São José de Piranhas, transferida há 80 anos para a construção da
represa. A obra do canal também desloca agricultores que têm suas terras no
caminho para vilas agrárias.
“De imediato, a gente sentiu uma grande alegria, porque
morávamos em uma fazenda, recebíamos água de carro-pipa, mas aí aos poucos
depois da mudança que a gente foi vendo alguns sentem tristez”, disse uma
moradora.
As casas são grandes, mas estão rachando.
Com relação ao dinheiro público investido aqui, como é que
você se sente?
“A gente vê que foi uma quantia bem grande e que de certa
forma sai do nosso bolso”, disse a moradora.
Cada família teria um lote de cinco hectares, um deles
irrigado, para plantar. Mas passados dois anos, eles continuam vivendo de uma
mesada do governo.
“É a mesma coisa, a gente está numa invalidez. Porque o que
a gente é acostumado mesmo é trabalhar, trabalhar na roça para obter o sustento
da pessoa, cada um de nós”, disse
Seu Lindoval.
Seu Lindoval.
A caixa d’água também rachou. E só não falta água nas casas
porque Seu Lindoval fez uma gambiarra mandando a água direto, racionando, uma
rua de cada vez.
Em alguns trechos é o próprio canal da transposição que está
rachado - árvores crescendo no fundo seco. Desde 2005 o Tribunal de Contas da
União encontrou irregularidades que chegam a R$ 734 milhões. O Ministério da
Integração investigou contratos que não foram honrados ou que tem sobrepreço,
pagamento duplicado por obras ou pagamento de serviços que não foram
executados.
Ministro: “Foram cinco processos investigativos e assim que
eles responderem às informações que constam desses relatórios nós então
tomaremos as providências cabíveis”.
Se o ministério está esperando o contraditório, é por que
encontrou sobrepreço e superfaturamento.
Ministro: “Nos relatórios até aqui existe sim, há indícios
de sobrepreço, de superfaturamento”.
Além disso, por determinação do TCU, o ministério deve
investigar a paralisação de obras. “Isso tem que ser identificado quais são os
responsável por isso. Por que essas obras não foram concluídas e em que
condições esses contratos foram assinados”, disse o Ministro do TCU, Raimundo
Carreiro.
Alguns trechos abandonados já foram retomados depois que o ministério refez os projetos e licitou novamente as obras. Até março todos devem estar licitados.
Em Serrita, Pernambuco, encontramos uma comitiva de
esperança. Leva os bois, fraquinhos, avançam devagar porque param onde
encontram algum verde nas árvores. Neste canto de Pernambuco caiu uma chuva no
dia 5 de dezembro - não ficou água nos barreiros, mas a vegetação da caatinga
brotou.
“O gado veio para cá porque a situação é difícil lá. Se
ficasse lá, talvez amanhã não tivesse nem mais a metade vivo. Porque não tinha
o que dar a eles hoje. Aqui está melhor, tem uma folhinha murcha. Eu acredito
que eles, comendo essa folhinha murcha, vão sobrevivendo. E lá no meu terreno
não choveu nem para isso, nem para fazer água, não fez água nem para
passarinho”, conta Francisco Tadeu.
Nem todas as vacas chegam ao destino. Uma é resgatada de
caminhonete. Tão debilitada, que não consegue parar em pé. O esforço dos
vaqueiros é vão.
Francisco Tadeu é a classe média agrária do sertão que está
sendo jogada na pobreza por causa da seca. “O primeiro gado começou a morrer da
seca no Natal de 2011”, diz ele.
Treze meses depois, já se foram 60. O Conselho Nacional de
Pecuária de Corte estima que o Nordeste perdeu 12 milhões de cabeças de gado
por causa da seca. Metade morreu e a outra metade foi abatida antes da hora ou
mandada para outras regiões.
“Essas vaca aqui eram das melhores vacas de leite que eu já
possui. Isso dá uma tristeza tão grande! Essa vaca aqui mesmo quando ela tava
morrendo, eu olhei para ela e dos olhos dela corria água. Para ela, é como se
ela tivesse se despedindo”, se emociona Tadeu. “Eu estou andando aqui. Estou
andando aqui agora, porque vim com vocês. Mas não gostei de olhar para cá, não.
Quando olho pra uma situação dessa...”
No curral ficaram as que estão fracas demais para ir embora.
“Esse era para ser um animal bonito. É filho de vaca boa, vaca cara. Era para
ser um animal bonito. Quando está assim não dura mais muitos dias, não”,
lamenta. “Vaca como essa aqui eu comprei oito de uma vez. Essas foram a R$ 2, 5
mil. Era vaca acima de dez litros de leite”.
Enquanto pôde, ele comprou ração. Mas a seca fez o preço se
multiplicar por quatro.
O senhor tem capital depois para repor o rebanho?
“Tem não. Eu nem penso isso. Se for pensar isso aí, fico
doido”.
A transposição do São Francisco, o senhor acha que se
estivesse pronta ajudava aqui?
“Se for como eles dizem,o pessoal diz, acredito que ajudava.
Acredito que melhor do que está fica. Muito, porque água é riqueza”.
A três anos de ver a água correndo, a família se agarra na
fé. “Vamos esperar pela vontade de Deus, né? Se for para acabar até a última,
acaba. Vamos ver se pelo menos a gente sobra para contar a história”.
Com informações do G1/ Fantastico
0 comentários:
Postar um comentário